O Sínodo para a Amazônia, depois da publicação de Querida Amazônia, entrou numa nova fase, dificultada nas últimas semanas pela pandemia do Covid-19, que tem obrigado a Igreja a procurar novos modos de realizar a missão evangelizadora. Mesmo diante da situação, a Igreja da Amazônia está acolhendo e refletindo sobre a Exortação do Papa Francisco, um documento bem acolhido pela Igreja do Brasil, onde em poucos dias foi esgotada a primeira edição do texto.
Entre os padres sinodais estava Dom Giovane Pereira de Melo, bispo de Tocantinópolis – TO, e Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Laicato da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. Em referência ao laicato, o trabalho que levam nas comunidades “é um caminho para a gente tornar concreto alguns aspectos do documento”. Por isso, precisa ser fortalecido o trabalho que já está sendo desenvolvido, incidindo na formação, que ajude a serem considerados como sujeitos de transformação na Igreja e na Amazônia. Segundo o bispo, tem deixado caminhos abertos, onde “vamos avançando, vamos dialogando e vamos encontrando encontrando novos caminhos”.
O Papa Francisco tem ajudado a impulsionar uma Igreja sinodal, segundo Dom Giovane, onde se faz possível “sentar juntos, conversar, discutir e buscar caminhos”. Ele destaca que com o Sínodo para a Amazônia, “os indígenas se sentiram abraçados pela Igreja”, fazendo possível que sua voz “chegasse a todo mundo. Todo mundo ouviu as necessidades, as demandas, as lutas e esperanças dos povos indígenas”. Essa atitude se contrapõe, no Brasil, com “uma perseguição em relação aos indígenas, às suas organizações, aos movimentos populares, e aos setores da Igreja que estão mais comprometidos com esta causa”.
Um dos grandes desafios, segundo o bispo de Tocantinópolis, é “fazer com que os nossos presbíteros abracem essa ideia de uma Igreja com rosto amazônico”. Junto com isso, ele insiste na “construção de uma Igreja de caminho sinodal. Precisamos recuperar essa eclesiologia da Igreja Povo de Deus, que, principalmente as gerações mais jovens de presbíteros, às vezes não entendem, não abraçaram essa ideia”. Do contrário, “se nós não escutarmos e não entender que a missão da Igreja não se faz só com o ministério dele, mas que se faz com o serviço, com a presença, com a atuação de todos os batizados, nós não iremos cumprir a missão de Cristo de anunciar a boa nova do Evangelho”. Daí, o sonho de Dom Giovane, “uma Igreja toda ela ministerial”.
Depois de ter recebido a Exortação pós sinodal Querida Amazônia, alguém que participou da Assembleia Sinodal que aconteceu no mês de outubro, qual é sua reação?
No Brasil, os cinco regionais que compõem a Amazônia, nós estamos na fase de recepção do documento. Em termos locais, a imprensa, ela, no geral, não focou o documento, apenas a questão dos ministérios, principalmente dos homens casados, e não não foi muito além disso. A gente esperava, pelo menos se preparou, para que pudesse ser feito uma divulgação maior, através dos meios de comunicação local, da Exortação, mas o interesse foi mais direcionado para esta questão dos ministérios, e de modo particular para a questão dos viri probati. A imprensa, no geral, ficou um pouco na periferia do eixo fundamental, do eixo central do documento, que era a questão de toda a problemática que envolve a Amazônia e o planeta.
Em termos de Igreja, nós estamos agora na fase de realização dos seminários regionais, diocesanos, para tomar conhecimento do documento como um todo. Nesse sentido a REPAM (Rede Eclesial Pan-Amazônica) vem fazendo seu papel de assessoria nesses seminários. Há uma série de iniciativas já encaminhadas em termos de CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), de REPAM, para tornar o documento conhecido, e, dentro daquilo que é possível, assim fazer. O documento, pelo jeito, teve uma acolhida bastante grande. Tanto é que a primeira edição da CNBB, do documento, foi esgotada. Já estão fazendo uma segunda edição do documento.
Quais são os passos que devem ser dados nos próximos meses?
Nós estamos nesta fase de acolhida do documento, de estudo como as lideranças, com os padres, e de certa forma a gente pode dizer que, no interior da Igreja, há uma acolhida. As comunidades, principalmente aquelas que foram ouvidas no decorrer do processo sinodal, elas sentiram que foram ouvidas, que a Igreja as ouviu e tornou porta-voz dos seus clamores, dos seus gritos. Tem passos práticos que precisam ser dados, que exige tempo, e também outros tipos de articulação, por exemplo a Comissão para Amazônia. Nós, os bispos da Amazônia, não nos encontramos depois do Sínodo.
Mas certamente a partir de agora, da publicação da Exortação, nós seremos convidados a nos encontrar para ver como o conjunto dos bispos que estão na Amazônia, podemos levar adiante algumas propostas que estão nas Exortação, ou que estão no Documento Final, e que não nos impede, como bispos, como pastores das igrejas locais, levar adiante. Por exemplo, a questão dos ministérios, a questão das iniciativas que já existem, o fortalecimento de iniciativas que já existem na defesa da Casa Comum. Outros aspectos que as nossas igrejas precisam retomar. Nós temos um grande desafio que o Documento Final colocou, que é a questão da formação, esse é um grande desafio, e foi um dos clamores do Encontro Continental das CEBs.
Há muito tempo, nós precisamos rever o processo de formação dos nossos presbíteros. E se nós queremos preparar presbíteros para a missão na Amazônia, respeitando os povos da Amazônia, sua cultura, suas experiências religiosas, a questão do diálogo, que precisa existir na Amazônia, tendo em vista a grande força pentecostal que tem na Amazônia, de Igrejas de outras confissões religiosas. Então precisamos rever a questão da formação dos presbíteros.
O Sínodo para a Amazônia tinha como objetivo novos caminhos. Quais são os novos caminhos que a gente pode dizer que estão sendo propostos, que podem ser assumidos a partir desse processo sinodal?
No encontro de Belém dos bispos da Amazônia, foi falado bastante das experiências que existem na questão ministerial, seja de animação das comunidades, seja o ministério da Palavra. Partindo de questões práticas, este é um caminho para a gente tornar concreto alguns aspectos do documento. Já existem uma diversidade de ministérios, da Palavra, da visitação, mas nós podemos avançar ainda nesse aspecto, e dar oficialidade a esses ministérios. Alguns existem, mas não há uma oficialidade para isso, uma ritualidade para isso. Esse é um aspecto que precisa ser ter levado em conta.
O Papa fala do papel dos cristãos leigos e leigas nesse processo de evangelização da Amazônia, e aí há um caminho que já existe, mas que precisa ser fortalecido, da formação dos cristãos leigos, precisa ser direcionado, no sentido de que eles são amazônidas, e que precisa levar em conta, não aspectos teológicos da fé, mas trabalhando toda essa articulação da ecologia, da defesa dos povos, dos grandes desafios sociais que estão presentes na Amazônia. Isso precisa entrar na dinâmica do processo de evangelização, isso precisa fazer parte do conteúdo formativo dos nossos cristãos leigos, exatamente para serem sujeitos, não só na Igreja, mas também no processo de transformação da Amazônia.
Tem vozes críticas, em referência a Querida Amazônia, ao respeito do sonho eclesial, mas tanto na Laudato Si como ao longo do processo sinodal, ficou claro que tudo está interligado e que não se entende um sonho sem os outros. O que dizer diante dessas críticas, como ajudar a entender que a proposta do Papa Francisco, como ele mesmo falou, é mais centrada nos diagnósticos do que as pequenas coisas, os avanços concretos que alguns pretendem alcançar?
O Papa na Exortação, principalmente nesse capítulo que trata da questão eclesial, do sonho eclesial, ele não fechou a questão. A discussão sobre a ministerialidade, sobre a presença da mulher na Igreja, dos leigos na Igreja, e a continuidade da busca desses novos caminhos, está muito presente no documento. Embora o Papa não tenha de direcionado, como nós durante o Sínodo apontamos, no sentido concreto, e dizer que o caminho por é por aqui, o Papa não fechou essa discussão, deixou em aberto.
Aí é um caminho a ser percorrido pelas igrejas locais, nós bispos, a partir das das nossas realidades, podemos avançar e continuar propondo. No caso dos ministérios, no caso da mulher, no caso do laicato, são caminhos abertos que o Papa deixou para que nós também, vamos avançando, vamos dialogando e vamos encontrando encontrando novos caminhos.
Como o senhor falou, estão previstas a assembleia da CNBB, seminários nos regionais, nas dioceses, está prevista a visita ad límina, tudo dependendo da situação que estamos vivendo diante da pandemia do coronavírus. Esses momentos podem avançar na concretização da questão ministerial que aparece no sonho eclesial?
Eu acho que sim, porque há um clima favorável para isso, e é um clima favorável não só no episcopado brasileiro, de modo particular no episcopado da Amazônia, como também do Papa. Diferentemente do período de João Paulo II, que não queria discutir essa questão da experiência da ministerialidade, a experiência da dinâmica sinodal do Papa Francisco, a experiência sinodal, por exemplo, da Igreja do Brasil, e aí nesse sentido, as comunidades eclesiais de base, nesses 50 anos, têm contribuído na construção desta experiência de sinodalidade, de sentar juntos, conversar, discutir e buscar caminhos.
O que talvez nos falta é a gente tirar tempo, sentar seriamente com todas as forças da Igreja, e trabalhar profundamente as questões e repropor caminhos, fortalecer caminhos de avanço significativos, que a Igreja, de modo particular no Brasil, já fez. E aí, as comunidades eclesiais de base, nesta questão da sinodalidade, da valorização do laicato, deste compromisso de fé e política, ligar a fé com os compromissos sociais, se nós criamos ambientes, por exemplo, a Assembleia dos Organismos do Povo de Deus, que estava deixado de lado há um tempo atrás, que foi retomado a partir do ano passado.
Se nós criamos pautas para esses espaços que nós já temos, seja na conferência, seja na Comissão da Amazônia, seja no Intereclesial das CEBs, seja na Assembleia dos Organismos do Povo de Deus, seja na no Encontro Nacional de Presbíteros, que talvez seja um dos grandes desafios, e fazer com que os nossos presbíteros abracem essa ideia de uma Igreja com rosto amazônico, nós temos um caminho largo para ser ser percorrido, e com um horizonte de esperança. O Papa, pelos sonhos, nos aponta esse caminho e de um horizonte de esperança, de perspectivas positivas, de abertura, e é claro, alguns caminhos a gente vai mais rápido, outros caminhos se vai caminhando conforme é possível avançar.
A voz dos povos indígenas na assembleia sinodal foi, segundo diferentes vozes, decisiva. As reações dos indígenas diante de Querida Amazônia são de grande acolhida por tudo o que o Papa Francisco tem feito por eles. Poderíamos dizer, ainda mais diante da realidade sociopolítica que o Brasil está vivendo, que Querida Amazônia contribui para que os indígenas, na prática tenham carta de cidadania?
Sim, porque os indígenas se sentiram abraçados pela Igreja. Os povos indígenas presentes no Sínodo para a Amazônia sentiram que a Igreja, através dos seus canais, deu voz aos seus clamores. Se eles já tinham, pelas suas organizações, os canais locais em que eles podiam falar e fazer ouvir a sua voz, a Igreja, através do Sínodo, fez com que essa voz, esses clamores, esses gritos dos povos indígenas, chegasse a todo mundo. Todo mundo ouviu as necessidades, as demandas, as lutas e esperanças dos povos indígenas.
O desafio é grande porque há uma força muito forte, contrária a Querida Amazônia, no sentido político social. Eu olho especificamente a realidade do Brasil. O atual contexto político que nós estamos vivendo, não é um contexto favorável. Pelo contrário, nós temos visto que há uma perseguição clara em relação aos indígenas, às suas organizações, aos movimentos populares, e aos setores da Igreja que estão mais comprometidos com esta causa. A questão do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a questão da CPT (Comissão Pastoral da Terra).
O ambiente da Igreja universal, principalmente com a figura do Papa Francisco, com Querida Amazônia, e boa parte do episcopado brasileiro, da igreja no Brasil, o clima é favorável para esse reconhecimento da cidadania dos povos indígenas. Agora, temos grandes desafios, a questão é saber se estamos com a disposição, com a coragem profética, de abraçarmos com os povos indígenas os desafios e as propostas que Querida Amazônia coloca para a Amazônia.
O senhor é presidente da Comissão Episcopal para o Laicato. Numa Igreja sinodal, e o Papa Francisco tem apostado decisivamente por essa Igreja sinodal, tendo convocado o próximo sínodo com esse tema, o papel dos leigos é fundamental. O que representa esta Igreja sinodal e como isso pode ser assumido desde a Comissão Episcopal para o Laicato e dentro da Igreja do Brasil?
Nós temos no Brasil espaços em que a gente pode viver e praticar esta dinâmica de uma Igreja sinodal. Os conselhos de pastoral, os conselhos comunitários, as experiências de assembleias, os conselhos diocesano do laicato. Nós temos espaços em que esta dimensão sinodal, de comunhão, de participação, de decidir juntos, existem. O que precisamos é fortalecer esses espaços e colocar isso como ponto fundamental nesta construção de uma Igreja de caminho sinodal. Precisamos recuperar essa eclesiologia da Igreja Povo de Deus, que, principalmente as gerações mais jovens de presbíteros, às vezes não entendem, não abraçaram essa ideia.
Precisaria recuperar essa eclesiologia, recuperar esta dimensão de ministerialidade, de ampliar esta questão da ministerialidade. Precisaríamos reconhecer que a ministerialidade não se reduz apenas ao aspecto interno da Igreja, mas que um leigo que atua em nome do Evangelho, em nome da igreja, no sindicato, no partido político, ele também exerce um ministério e compromisso da sua fé no contexto da sociedade. Precisamos ampliar e aprofundar estas experiências e respalda-las com uma eclesiologia que nós temos, que é a eclesiologia do Concílio Vaticano II, que pensa a Igreja como Povo de Deus.
Na prática, diante dessa proposta de Igreja sinodal, poderíamos dizer que é possível que o clero comece escutar o laicato e especialmente as mulheres?
Se nós não escutarmos e não entender que a missão da Igreja não se faz só com o ministério dele, mas que faz com o serviço, com a presença, com a atuação de todos os batizados, nós não iremos cumprir a missão de Cristo de anunciar a boa nova do Evangelho. Hoje na realidade da Igreja, e no particular da Igreja do Brasil, na Amazônia, eu como padre, como bispo, não posso, de maneira nenhuma, pensar uma evangelização sem a presença, sem a missão, sem o testemunho dos cristãos leigos. E os cristãos precisam ser sujeitos, não apenas executores, é preciso que padres, leigos, toda a Igreja, sentem, conversem, e como irmãos encontrem caminhos para a evangelização. Do contrário, não temos como cumprir a missão do Senhor.
Alguém que nasceu na Amazônia, que é bispo na Amazônia, qual é seu sonho para a Amazônia e para a Igreja da Amazônia?
A gente precisa acreditar e precisa trabalhar para que tenhamos, de fato, uma Igreja toda ela ministerial, que tenhamos uma Igreja em que os cristãos leigos e leigas se sintam sujeitos na Igreja e na sociedade. Para isso, a Igreja invista na formação do laicato. Assim como nós investimos na formação dos nossos futuros presbíteros, dos atuais presbíteros, nós precisamos também, senão no mesmo tanto, investir.
Eu por exemplo, na diocese de Tocantinópolis, a minha prioridade é a formação do laicato, não deixo de formar os presbíteros, mas através de duas escolas, nós temos uma Escola de Formação de iniciadores à vida cristã e temos uma escola que forma lideranças leigas para atuação na Igreja e também fora na sociedade. Investir na formação, fortalecer e ampliar a ministerialidade na Igreja, e fortalecer esses ambientes em que nós podemos viver uma experiência de Igreja sinodal, de Igreja de irmãos, que caminham juntos, que decidem juntos, que celebram juntos.